sábado, 2 de janeiro de 2010

Reminiscências: Camburão - um símbolo do medo

Na minha infância de morador da periferia de uma pequena cidade do interior do Brasil a figura mais impressionante do que era a personificação de uma autoridade era o carro da polícia, o temível Camburão, ou Chevrolet Veraneio.

Ninguém estava mais próximo do povo e usava com tanta propriedade a força e o poder sobre a vida e morte das pessoas quanto o policial e, nada mais ilustrativo da presença do Estado, potencializando nossos medos, como um Camburão Veraneio rodando com quatro policiais ostensivamente carregando suas amedrontadoras escopetas e submetralhadoras.

Apenas uma vez vi um Camburão vazio e estava parado em frente a uma casinha de madeira que ficava no meu caminho da escola. Mesmo vazio o carro metia medo. Passei ao lado porque não o tinha avistado antes, mas passei olhando o chão porque, todos sabem que não se olha nos olhos de bêbados ou policiais e, naquele momento o carro era pura autoridade. Pensei que se olhasse diretamente para o Camburão receberia uma surra da polícia. Coisas de criança. Porém, confesso, estão no meu inconsciente de adulto.

Toda a minha vizinhança, parentes incluídos, todo o mundo nordestino, tinha muito medo da polícia e das autoridades, de modo geral. Talvez porque tivessem sido desgraçadamente roubados e ameaçados pela capangagem do governo desde o começo em suas terras e por gerações e não seria diferente em Mato Grosso.

Até mesmo os padres e professores eram respeitosamente obedecidos e postos em cerimoniosa distância porque sempre estiveram muito próximos "de uma raça que sempre explora os coitados e que não se pode fazer nada contra essa cambada de ladrão", disse uma vez um sujeito negro e miúdo que meu pai acoitou em casa porque tinha esfaqueado um fazendeiro caloteiro que pagava o que queria porque era amigo de deputado e desembargador. Então sempre houve muita raiva surda contra os políticos e juízes e o temor ferrenho do seu braço armado, a polícia.

Intuitivamente temia aquele Camburão vazio parado em frente a casinha de madeira. A casa era de um policial baixinho, branco, brabo, ignorante e extremamente malvado que surrava toda a sua família, uma mulher magrinha e comprida e mais três filhas magrinhas.

Uma das garotas, diziam os vizinhos, tinha se “perdido” com um rapaz bonito, trabalhador, estudioso e “safado”. Disseram que ela gostava muito do rapaz e que muitas outras moças também gostavam, tanto que “levavam quentinho” para ele, que recusava poucas, mas que sério mesmo era o compromisso dele se fazer doutor em Goiânia.

Disseram que antes do rapaz mudar ela dormiu com ele, como sempre fazia, ou não. Ao ouvir as histórias quando criança sempre me atrapalhava imaginando o sentido de algumas expressões ou palavras e acho que me escapava o fio das conversas como quando em “a moça se perdeu” ou “dormiu com outro”.

Alguns diziam que ele nunca dormiu com ela que se perdera com outro homem, feio de dar dó, e que temendo uma gravidez, o falatório do povo, o ódio do pai ou simplesmente querendo ganhar a vida de qualquer jeito, foi até o rapaz e fez a proposta-ameaça, ou eles se casavam ou então seu pai “que já tinha matado muita gente” saberia que ela tinha sido estuprada.

O final da história é que numa noite o Camburão pegou o rapaz e pouco tempo depois ele morria. Alguns disseram que morreu arrebentado por dentro depois de muita surra porque não apenas se recusou a casar como negou que tivesse tido alguma coisa com a moça, que, por acaso, era sua colega de trabalho.

Isso aconteceu há mais de trinta anos, acho que as coisas mudaram neste século XXI. Antigamente tanto os “maus-elementos” corriam da polícia quanto o trabalhador também. Algo deve ter mudado desde os anos 70.

Pelo menos a polícia trocou a sombria Veraneio pela austera Blazer. O problema é que a identidade ficou prejudicada porque a mesma Blazer tanto pode ser carro de polícia quanto de bandido. Antes as coisas eram simples, identificávamos o Chevrolet Opala como o carro usado pelos bandidos, ou pelos maconheiros, o que dava no mesmo e, o inconfundível Chevrolet Veraneio como único e temível carro da polícia.

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