“Eu já fui preto e sei o que é isso” disse Róbson, craque do fluminense nos anos 50, segundo o relato do jornalista Mário Filho, um dos responsáveis em transformar as matérias sobre futebol, algo marginal numa sociedade que respirava política, em algo de ávido interesse do público. Pode ser que a frase tenha sido criada pelo jornalista, por acaso irmão de Nelson Rodrigues, devido ao momento histórico em que o cidadão médio discutia o caráter do povo e o destino da nação brasileira a partir da cor da pele.
Isso porque com a derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1950 surgiu o nosso “complexo de vira-latas”, lançado por Nelson Rodrigues, em que a nossa “mulatização” provocara na alma nacional um atávico complexo de inferioridade e, não por outro motivo, craques como Barbosa, Bigode e Juvenal carregaram a culpa do fracasso e a acusação de terem “amarelado”, ou como se dizia na época, “os pretos da seleção se borraram todos”. É claro que anos depois surgiu um craque inquestionável, o rei Pelé.
O rei se diz “criolo”, como era costume dizer antigamente, e hoje não se pode mais, e muito menos chamar ninguém de “pretinho” ou “escurinho”. De qualquer forma, apesar de assumir a negritude, nem mesmo o impecável rei escapa da regra do “eu também já fui preto”, mesmo porque se manteve afastado das discussões raciais e, para não variar, se envolveu sexualmente apenas com moças brancas, tendo filhos mulatos, amorosamente assumindo-os todos, exceto uma filha, por acaso, a mais “escurinha”.
É claro que nem mesmo Pelé escapa da “Maldição de Cã”, ou seja, do filho de Noé que fora amaldiçoado pelo pai a servir como escravo dos seus irmãos por toda a eternidade. Mas como o indivíduo não vive para sempre, e sim os seus gens através dos seus filhos, e dos filhos dos seus filhos, a maldição fora estendida aos descendentes de Cã, que, se estabeleceram na África e onde seriam reconhecidos pela marca da maldição, a cor escura, além do nariz chato e do cabelo pixaim.
Mui provavelmente os negros teriam a alma condenada, e apenas se salvariam com muito trabalho duro, se aceitassem catolicamente a condição de escravos dos seus irmãos brancos. Isso durante a escravatura. Todavia, com a Abolição ex - escravos perambulavam pelas cidades às vistas dos homens de bem e pensadores que apontaram o problema da miséria e da violência devido ao envenenamento nacional pelo “sangue ruim” dos negros, sempre pobres, promíscuos, indolentes, criminosos e violentos.
A saída seria “embranquecer” a nação com os imigrantes, e mostrar aos negros que por imitação total aos brancos e através de casamentos inter-raciais, mesmo porque pobres devem casar, o Brasil teria a cada geração os traços fenótipos europeus e se esqueceria da sua natural inferioridade, ou seja, o único modo dos “afros - descendentes” obterem a redenção, ou reconhecimento social como seres humanos que possuem alma imortal era se tornarem brancos.
O tempo passou, atravessamos o século XX ainda com o pensamento da “mancha de Cã” encruada em nosso país, e chegamos ao século XXI substituindo a noção de hierarquia social calcada nas raças pelas desigualdades sociais, ou falta de oportunidades devido ao peso do Estado sobre a vida do cidadão, e o único modo de alterar essa realidade seria a distribuição de renda e, um pouco mais que isso, através do acesso de todos à Educação.
Aparentemente todos concordaram com isso, do PSDB ao PT, porque é sabido que um engenheiro civil ganha mais que um servente de pedreiro, ou que um universitário possui mais possibilidades que um garoto semi - alfabetizado. É claro, ninguém é indiferente às pessoas passando fome, e todos desejam que o governo dê educação formal à todos os brasileiros.
No entanto, quando o PT criou os programas de distribuição de renda chamados de “bolsa família” isso foi considerado uma aviltante “bolsa esmola” que apenas favorecia um círculo continuo de mais pobreza levando inclusive a pobres parindo promiscuamente mais pobres sob o incentivo do governo federal. Então os críticos se lembraram de que o “bolsa família” era apenas a ampliação de um programa criado pelo PSDB, e aí o assunto morreu. O problema maior ocorreu com oprograma de reserva de vagas por etnia, a chamada “cotas raciais”.
Segundo nossas elites, através dos seus porta-vozes, Veja, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, ou assistindo ao Jornal Nacional, no Brasil de negros, índios e estrangeiros há espaço para que todos, desde que estudem, e certamente, todos acabarão como Eike Batista ou Thor Batista. Isso é o que diz a nossa mídia, pois “Não somos racistas”, conforme defende o livro do chefão dos jornalistas da Rede Globo Ali Kamel que, curiosamente, investe contra as cotas na Educação.
Ao invés de cotas o Estado deveria investir firmemente na educação básica porque é obrigatória a todos os brasileiros e, sendo assim, todos os brasileiros, incluindo negros e índios, terão igualmente a mesma capacidade para ingressar numa faculdade. Esse é o pensamento encastelado nos partidos DEM/PSDB, mas o PT e partidos de esquerda acham a prática inviável, pois corrigir distorções sociais levariam gerações, e, por motivos óbvios, dispensam comparações com os precoces “Tigres Asiáticos”.
Ocorre que o Estado brasileiro sempre foi chegado numa pegadinha, em palavras tortas, por exemplo, em 1888 a Princesa Isabel assinou a abolição da escravatura, mas não o extinguiu simplesmente, apenas dispôs que haveria proibição até o ano de 1988. É claro que, findo o prazo de validade da lei, ninguém se dispôs a restaurar a escravatura no Brasil, mesmo com o controle do Estado nas mãos da mesma elite da época do Império.
Indo um pouco na direção de que os tempos são outros, apesar de tudo, é que alguns forçam a mão, e acabam descobrindo que as coisas mudam, e permanecem as mesmas.
Pois não é que a algum tempo o jornalista Heraldo Pereira processou o colega Paulo Henrique Amorim porque fora chamado “preto de alma branca”, e ganhou a ação por injuria racial. É claro que sabemos quem são os dois profissionais, são bons jornalistas. O problema é que Paulo Henrique milita na causa negra e considera as cotas raciais como algo concreto e válido, ou seja, primeiro se implanta essa política e depois de uma geração, algo como 25 anos, se avalia os efeitos na sociedade brasileira.
Se o branco Paulo Henrique Amorim se expos em prol dos negros brasileiros o mesmo não aconteceu com o negro Heraldo Pereira, restando a impressão de que preferiu ficar mudo a se indispor com a elite brasileira através do seu chefe Ali Kamel. É claro que Paulo Henrique torturou o íntimo de Heraldo Pereira, a começar chamando-o de “negro da casa grande”, como referencia aos antigos escravos que prestavam serviços domésticos, privavam da amizade dos senhores, e ignoravam o sofrimento dos irmãos “negros da senzala”.
Porém, se Heraldo Pereira passou ao largo da discussão das cotas, ou como o DEM/PSDB chama, de “racialização ideológica do PT”, porque é um assunto que absorve totalmente a figura pública do jornalista, e, talvez porque cultive valores como mérito pessoal, esforço próprio, desejo individual de ascensão social, eis que, também não omitiu que a Rede Globo o contratou nos anos 80 tão somente por que queriam um jornalista negro na equipe, entrou por cota.
Ao mesmo tempo em que Heraldo Pereira buscava seu reconhecimento profissional no interior de São Paulo, no interior de Mato Grosso, um jovem jornalista buscava a mesma coisa saindo de Cáceres para Cuiabá, seu nome era J. Júnior, sendo depois reconhecido por Elias Neto.
O sonho do cacerense, de origem étnica confusa, talvez Bororo brasileiro ou Chiquitano boliviano, era trabalhar na TV Globo, e se no rádio tudo estava bem, na televisão a melhor figura da época em Cuiabá era Lúcio Aparecido Sorge, seu colega de rádio, e de pobreza. Apesar do profissionalismo e talento de ambos, da beleza masculina dos dois, reconhecida em qualquer lugar do mundo, o que os distinguia é que Lúcio Sorge é branco, e Elias Neto não, e, partindo desse ponto um deles chegou três anos antes na TV Globo, ou a cuiabana TVCA.
Atualmente podemos considerar que Elias Neto é a cara de Cuiabá para quem vem de fora ou para os “paus-rodados”. E nesse sentido, houve uma reportagem nos anos 90 em que dizia que os traços indígenas eram os traços dos cuiabanos, sendo o que os identificavam e, Elias Neto era sua melhor expressão. Todavia, para não fugir a regra do “eu já fui preto e sei o que é isso”, ou querendo passar longe de uma identidade particular que não a imposta pelos cultores do “embranquecimento” nacional, Elias Neto respondeu apenas: “Na época, tinha os cabelos mais longos e a pele queimada de sol”.
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